Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Manual de maus costumes

Manual de maus costumes

01
Out11

O processo de Isaltino

jorge c.

Isaltino Morais é um dos mais interessantes case studies da nossa época. Através do seu estranho e curioso processo, seríamos capazes de desenhar um quadro sociológico da opinião pública, da percepção da justiça e da conjuntura política.

Não me interessa estar, agora, a traçar a acefalia do debate público sobre o caso. Já dei para esse peditório e confesso que estou um pouco cansado. É um problema de deformação democrática, ignorância constitucional e falta de memória.

Interessa-me, antes, deixar uma breve nota. Uma simples nota em que meço cada uma das palavras muito cuidadosamente para que o seu significado não seja mal interpretado: o que a Justiça portuguesa está a fazer ao cidadão Isaltino Morais é um dos mais aberrantes atentados ao Estado de Direito.

25
Set11

Da civilidade

jorge c.

Há uns dias explicava a um estrangeira (assim mesmo, uma estrangeira) que, de toda a História de Portugal, o momento que mais me orgulhava era a abolição da pena de morte. Esse momento representa, para mim, um grande avanço civilizacional no caminho para uma sociedade mais inteligente e sustentável, mais esclarecida no estabelecimento consciente das regras.

Provavelmente, se eu fosse saudita estaria, hoje, muito orgulhoso do meu país por abrir o sufrágio às mulheres. É um sinal de que os tempos mudam e as realidades se transformam. É um sinal de que só com a integração e solidariedade podemos ter uma comunidade mais forte, porque justa.

Não deixa é de ser irónico que, quase ao mesmo tempo, se tenha executado um cidadão nos EUA - um exemplo para tantas outras coisas e, neste caso específico, uma amostra de paragem no tempo. A sua altura também chegará.

05
Jul11

Do justicialismo

jorge c.

O caso Casey Anthony não chegou aos media portugueses. Contudo, tem sido mais um dos julgamentos mediáticos nos EUA. A história pode ser, muito resumidamente, lida aqui e dá-nos uma ideia geral dos acontecimentos. A sentença saiu hoje.

Não interessa discutir a culpa. Interessa, antes, perceber que o justicialismo leva sempre ao descrédito da Justiça. A culpa, na praça pública, nunca pode morrer solteira e o rosto do mal tem de estar bem identificado. Nem nas democracias mais evoluídas parece ser do entendimento comum que para o apuramento da verdade material é necessário que não restem quaisquer dúvidas. A simples verdade por convicção é o oposto do nosso ideal comum de Justiça. Falamos sobretudo dos nossos direitos fundamentais.

Quando entrei na faculdade, levava comigo um aforismo que nunca larguei, mesmo não sendo eu um expert no direito processual penal. Ainda hoje o repito em discussões com amigos: mais vale ter mil culpados à solta do que um inocente preso.

 

28
Mai11

Um vício

jorge c.

A prisão preventiva aplicada por um tribunal ao arguido gera sempre questões em casos de processos mediáticos. No caso da agressão de duas miúdas a uma terceira, na zona de Benfica, não foi excepção. Não sou um conhecedor profundo do Direito Processual Penal, mas confesso que não encontro razão para grande polémica nesta situação em particular. Na redacção do art. 204º do Código de Processo Penal podemos ler: "Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: (...) c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas."

Ora, pelo follow up deste episódio na comunicação social sabemos que houve receio de represálias na família da ofendida e que isso a terá levado a refugiar-se fora do seu meio. Não sabemos a dimensão do problema real, mas temos, pelo menos, a percepção de que terá havido perturbação da ordem e da tranquilidade pública.

A minha posição relativamente a este artigo e à situação em concreto é que ninguém deve ser obrigado a abandonar o seu espaço familiar e social com base em receios justificáveis ou ameaças efectivas. Se o arguido mantém uma conduta reprovável, indo para além do mero incómodo, a medida de coacção aplicada poderá ser perfeitamente aceitável. É uma decisão do juiz em que temos de confiar.

Desacreditar constante e injustificadamente a Justiça já se tornou um vício de que nos pode custar muito caro.

28
Dez10

Momento solidário

jorge c.

Se há alguma coisa que me tira do sério é a esperteza saloia. Por isso mesmo não poderia estar mais solidário com a situação contratual da Jonas com a Ensitel. Mas para agravar isto ainda temos o total descaramento desta empresa em tentar cortar o pio às críticas que lhe foram feitas. Se é certo que há uma decisão em tribunal, também é certo que essa decisão se circunscreve apenas à resolução do conflito e não apaga todo o histórico da relação entre as duas entidades, pelo que se torna inconcebível uma tentativa de censura deste calibre. É que não vejo outro motivo para a empresa recorrer aos tribunais para que a Jonas apague os seus posts sem ser com base num caso julgado. Nem quero acreditar que alguém se possa ter sentido ofendido com o tom coloquial da Jonas naqueles posts, porque isso seria apenas um problema da Ensitel em viver em sociedade (motivo bastante para se dar ordem de encerramento compulsivo à empresa, olha agora não saber viver em sociedade...). E, portanto, como dizia, se a matéria do caso julgado não é objectivamente a natureza da relação contratual mas sim a decisão sobre o efeito, então o que aqui temos é um explícito atentado contra a liberdade de expressão.

Say goodbye to another one.

08
Dez10

Direito, Justiça e força nessa piça

jorge c.

"A conduta do arguido não se afigura, só por si, suficiente para representar a afectação do bem jurídico protegido pela norma que incrimina a violência doméstica, não consubstanciando uma ofensa à dignidade da pessoa humana, que coloque a ofendida numa situação humanamente degradante".

Esta foi a conclusão do sr. dr. Juiz da Relação de Coimbra que considerou que dar duas bofetadas na mulher não é violência doméstica. Ou melhor, nas suas palavras, "não se afigura, só por si, suficiente para representar a afectação do bem jurídico protegido pela norma que incrimina a violência doméstica".

O problema que temos aqui não é tanto um problema de aplicação da lei mas sim de compreensão da natureza da lei, da sua evolução e da sua consequente aplicação. É, portanto, um problema mais complexo.

O sr. dr. Juiz da Relação de Coimbra não consegue compreender o alcance da lei. É aceitável, visto que a vida muda todos os dias e não podemos estar a par de tudo. O que é a violência doméstica senão uma mera ofensa à integridade física? Para quê complicar? Se é uma bofetada, é uma agressão. Não importa ao sr. dr. Juiz da Relação de Coimbra que este comportamento seja consequência de uma relação conjugal, que implique a parentalidade, que implique a forma como vemos o outro e o modo como o tratamos para agir dentro de uma nova relação não-conjugal. Talvez isto seja filosofia a mais para o sr. dr. Juiz que está ali para despachar e que não está para se chatear com pequenas brigas de casais. Que se lixe a jurisprudência.

O que está em causa na violência doméstica não é a simples ofensa à integridade física, mas sim a maneira como colocamos em causa a dignidade da pessoa humana. A violência doméstica não pode ser encarada como um simples acto físico, mas antes como algo mais complexo que envolve factores emocionais e psicológicos que nascem de uma relação de intimidade. O bem jurídico que a norma visa proteger é este e não a face rosada de cada criatura que vive. Talvez por isso se faça uma distinção substantiva. É importante que essa distinção substantiva seja tida em conta na conclusão processual. Se não for, não estamos a aplicar o direito, estamos a destruí-lo.

10
Out10

Against

jorge c.

A abolição da pena de morte foi uma conquista civilizacional, uma evolução na forma de encarar o direito penal na Europa Ocidental. Não quero com isto dizer que não entenda as diferentes formas de o encarar noutras culturas, mesmo que muito próximas da nossa - os EUA, por exemplo. No entanto, insisto que a abolição da pena de morte é uma evolução no pensamento e atitude civilizacionais.

Justificar a abolição não é uma tarefa fácil num mundo que compreende mais a Lei de Talião do que os princípios básicos da equidade e da dignidade humana. Explicar por que razão tirar a vida a alguém por crime cometido não é um fundamento lógico numa sociedade organizada e com pretensões de criar um ambiente de paz social é praticamente inútil. Daí que assinalar uma data, sair à rua e dizer "Não" seja uma atitude dogmática que talvez não me importe de adoptar.

Uma coisa é certa, sinto-me confortável por viver num país que admite em primeiro lugar, em matéria penal, a vida como interesse supremo.

18
Set10

Aconteceu na Europa

jorge c.

Em 1506, depois de um longo período de peste e do consequente fervor religioso, Lisboa foi vítima de um dos maiores massacres da História de Portugal. Uma migalha fazia rebentar uma das mais sanguinárias operações de ódio de que há memória.

Entretanto, o mundo foi mudando, as mentalidades mudaram e consolidou-se a tolerância necessária à melhor convivência entre os homens dentro da sua diversidade identitária. Proclamámos o Direito como a nossa fonte de regulação em comunidade e o fiel depositário dos valores que entendemos como fundamentais. Chegámos mesmo, depois de cenários infernais, a declarar em conjunto numa Carta aqueles que julgamos serem os direitos universais do Homem e do Cidadão. Bastar-me-ia uma breve leitura pelos primeiros artigos desta Carta para compreender que o que se passou em Lisboa não faz sequer parte de uma escala actual de valores que se foram conquistando, em grande parte baseados numa experiência arrepiante, e que defendemos hoje como uma marca essencial da nossa civilização.

Por toda a Europa assistimos durante séculos a atentados sistemáticos ao outro. Perseguimos, discriminámos, ostracizámos, diminuímos, hostilizámos, massacrámos. E é exactamente dessa experiência e da necessidade de coexistir comunitariamente que nasce a União a que pertencemos, não parcial ou limitadamente, mas sim de plena cidadania. Somos hoje, enquanto cidadãos europeus, responsáveis e guardiões de uma História em construção - uma História de valores e de princípios muito bem definidos. Abrir o flanco ou perverter o espírito dessa História pode tomar proporções catastróficas.

Aquilo a que todos temos assistido em França nas últimas semanas não é um assunto de menor relevância nesta matéria, não é uma simples questão de política de imigração ou um tema de trato burocrático, nem tampouco uma divergência ideológica. Trata-se, pelo contrário, de matéria respeitante aos direitos civis universais e à dignidade da pessoa humana. E não falamos aqui do campo ideológico pois parece ser de senso comum que o que está escrito na Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais é um conjunto de princípios gerais e abstractos que nos definem enquanto comunidade e não uma mera declaração ideológica (esquerda-direita) de apenas uma parte de nós.

Com efeito, parece-me que discriminar um grupo específico numa circular que pretende reflectir o procedimento administrativo adequado a uma determinada legislação é um acto que atenta contra esses mesmos princípios e que, portanto, fere o direito comunitário num dos seus pilares fundamentais. No mínimo.

Não irei aqui ensaiar um discurso sobre identidades e as suas ramificações, causas e consequências. Não é de todo a minha pretensão converter ignorantes em cidadãos conscientes. Posso apenas dizer que não é o gostar ou desgostar de um certo grupo de pessoas que está aqui em causa, mas o tratamento humano e político que lhe damos, a forma como aplicamos a nossa lei, a equidade da nossa Justiça. E foi exactamente nesse sentido que o Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, afirmou de um modo bastante categórico que a lei é para ser cumprida e que a Comissão agirá sempre em conformidade com o Direito Comunitário.

É esta dogmática da lei que nos faz ter segurança institucional e acreditar que as conquistas civilizacionais serão preservadas. É esta dogmática que impede homens sem cultura europeia, sem consciência histórico-filosófica, homens como Nicolas Sarkozy ou José Sócrates, de banalizarem o mal operando administrativamente sobre os direitos fundamentais.

04
Set10

Uma tragédia

jorge c.

Nunca teci qualquer juízo sobre o processo Casa Pia. Nunca achei ou deixei de achar que este ou aquele eram culpados ou inocentes. Só um tonto pode achar alguma coisa baseado em nada ou, no máximo, na boateira do "eu conheço uma pessoa que...". Ainda bem que todos conhecemos pessoas, é bom sinal!

Chegados ao fim deste processo, não obstante a próxima maratona de recursos para instâncias superiores, resta comentar aquilo que verdadeiramente me preocupa em abstracto, aquilo que diz respeito à Justiça e ao seu reflexo social.

Foram 5 anos de julgamento. Foram ouvidas centenas e centenas de testemunhas (quase um milhar). Foram atirados na lama nomes de pessoas que nada tinham que ver com o processo e, mesmo as que tinham, foram-no sem qualquer fundamentação. Os magistrados foram postos em causa do primeiro ao último dia. Os advogados contribuíram mais do que ninguém para o atraso do andamento do processo. Os arguidos viram as suas vidas adiadas. As vítimas ficaram a aguardar. O país inteiro especulou, difamou e, mais do que tudo, duvidou. Duvidou e continua a duvidar, e é este o principal problema deste processo - a dúvida.

Feito um grande Otelo (façamos de conta que a Justiça é Desdémona), a partir deste processo, o país desconfia legitimamente do sistema. Será possível ser vítima de uma cabala tão rebuscada? Será possível que "nomes ligados à política" passem incólumes? Será possível lutar pela defesa do bom nome em Portugal? Podemos confiar na independência dos magistrados? Podemos confiar na boa-fé processual dos advogados? Podemos confiar na melhor diligência do MP? Podemos acreditar num sistema de Justiça? Podemos esperar que se faça justiça?

Tudo isto são questões legítimas que este processo levantou. Não me lembro de um tempo em que não se dissesse "isto está tudo mal" ou "os poderosos safam-se sempre" ou outras larachas do género. A verdade é que, com este caso, estas questões fazem todo o sentido. A dúvida está instalada. Ela é, agora, objectiva e inevitável. Não há alteração de legislação, mudança de liderança ou reforma do sistema que safe a imagem da Justiça portuguesa. Se o cidadão não acredita e rejeita a Justiça, ela não existe.

 

Adenda: este post do Funes, como sempre, também toca no essencial.

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Um blog de:

Jorge Lopes de Carvalho mauscostumes@gmail.com

Links

extensão

  •  
  • blogues diários

  •  
  • media nacional

  •  
  • media internacional

    Arquivo

    1. 2014
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    14. 2013
    15. J
    16. F
    17. M
    18. A
    19. M
    20. J
    21. J
    22. A
    23. S
    24. O
    25. N
    26. D
    27. 2012
    28. J
    29. F
    30. M
    31. A
    32. M
    33. J
    34. J
    35. A
    36. S
    37. O
    38. N
    39. D
    40. 2011
    41. J
    42. F
    43. M
    44. A
    45. M
    46. J
    47. J
    48. A
    49. S
    50. O
    51. N
    52. D
    53. 2010
    54. J
    55. F
    56. M
    57. A
    58. M
    59. J
    60. J
    61. A
    62. S
    63. O
    64. N
    65. D