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Manual de maus costumes

Manual de maus costumes

07
Jun13

A Vingança de Laertes

jorge c.

Uma viagem longa, a ressaca de um copo d'água e uma derrota do Benfica. Os dedos tresandavam, ainda, a tabaco. De tal forma, que até fumar me custava. Convenhamos que não era um bom dia para assistir a nada, nem a um homicídio, nem à ressurreição do Elvis, nem à vingança de Laertes.

Porém, foi assim, sem qualquer dignidade, que desci as escadas para a cave do Pinguim Café, comprometido com a Apuro e, em particular, com o meu amigo Rui Spranger, a quem havia prometido passar por lá assim que regressasse ao Porto. E é nesta lógica dos regressos que o nosso espírito fica mais receptivo aos detalhes da humanidade e da civilização. 

William Shakespear, o mais brilhante dos dramaturgos, sabia os espíritos fechados. A magia da sua arte era despertar os corações, debruçando-os sobre o abismo, com o céu em qualquer parte, sem saber se de dia ou de noite, porque a escuridão era total. Na vida ou na morte. A verdade suja e cruel acabaria por aparecer.

Precisamente quando ela aparece, em Hamlet, Paulinho Oliveira resolve convidá-la para um copo. É como se tivessem conversado e concluído que, às vezes, nem tudo tem de ser como aparenta. Nem a morte. É, então, que surge Laertes para despir Hamlet e expô-lo. Os dois mais mortos do que vivos, num jogo de convicções vincadas, como um dardo num alvo incerto. Mas, a serenidade de Hamlet inverte a certeza criada desde o início.

A Vingança de Laertes é um texto de uma erudição rara no teatro português. O seu autor (encenador e actor) consegue compreender o impacto que o carácter tem na dinâmica de uma sociedade e como um simples gesto pode corromper um universo. Quem vive, então, em função do quê? Que causa serves, Hamlet? São estas perguntas, do mais íntimo de uma personagem à reflexão social, que Paulinho Oliveira provoca, até nos esmagar o peito e fazer-nos questionar sobre o que fizémos (ou o Once in a Lifetime, dos Talking Heads). "Se queres prosperidade por um ano, cultiva grão. Se queres prosperidade por 10 anos, cultiva árvores. Mas, se queres prosperidade por um século, cultiva gente".

Todas as palavras no sítio certo, num texto longo que acaba por não incomodar, dada a sua dinâmica e a excelente encenação. Os dois actores são envolvidos por duas tensões diferentes que convergem no factor trágico. Laertes é uma tragédia universal e intemporal. E é dessa intemporalidade, das coisas que não morrem, que vive esta peça - da envolvência entre tempos diferentes.

Estamos perante um caso claro de uma peça que é muito bem recebida num bar da cidade do Porto (talvez o único que ainda se preocupe, mesmo que com poucos recursos), mas que merecia um palco maior, uma outra sala. O seu final lento e, talvez, o único momento desnecessário de todo o espectáculo (as fotografias são demasiado ingénuas e fica-se com a sensação de que nos estão a impor sentimentos, tornando o objecto óbvio) é agravado pelo desconforto da sala. 

No entanto, é um espectáculo tão inspirador, que esquecemos este detalhe com facilidade. Voltamos a beber. Voltamos a fumar. Perdôo o Benfica e desejo felicidades ao meu amigo que se acaba de casar. Pois, agora, compete-lhe a ele cultivar gente. 

 

26
Jun11

No fundo do mar

jorge c.

Não sei o que está na fronteira entre os sonhos e a fantasia. Sei, porém, que a fantasia é metafórica e que nos ajuda a crescer, a pensar em abstracto, a desenvolver a nossa percepção e os mecanismos para construirmos a nossa própria escala. Poucos são os que, a partir de uma narrativa fantástica, criam um factor pedagógico. A grande maioria prefere a infantilização. Por cá, tivemos a sorte de ter Sophia e José Gomes Ferreira.

Dos sonhos, desse lugar mais utópico de que mágico, ficamos com pouco mais do que uma idealização. O sonho embala as ideias e é, quase sempre, uma pretensão egoísta. Mas, deles podemos tirar uma estética terna, melíflua, ao mesmo tempo que negra e nublosa.

Nas "Histórias da Terra e do Mar", Sophia misturou estes dois universos, sem branduras. Gomes Ferreira fez o mesmo no "João Sem Medo". Até na fantasia existe adversidade e pode haver uma cortina de fumo - um sonho onde descobrimos a claridade. É algures nessa pedagogia que está a tal fronteira tão difícil de encontrar e que nos seduz, que nos leva à música, às letras e à encenação. Ora, não é fácil imaginar o imaginário que já por si só é tão perfeito. Representar qualquer um destes autores torna-se uma tarefa hercúlea.

Podemos, contudo, juntar dois ingredientes improváveis e fazer do imaginário uma representação fiel da fantasia e do sonho, recorrendo ao mais belo dos minimalismos. Foi precisamente este espectáculo que o Teatro S. Luiz montou, de forma muito feliz, com Bernardo Sassetti e Beatriz Batarda.

É como um bailado entre os dois universos. A irreverência ternurenta de Batarda contando a história da Menina do Mar, alimentando a fantasia, dizendo todas as palavras e todas as onomatopeias com a fragilidade e a delicadeza que isso importa. A cortina de sonhos enrolados e escuros como um coral sombrio no fundo do mar que nasce dos gestos leves de Sassetti - um nevoeiro constante que mistifica a rotina - desnorteia-nos e adormece-nos o adulto.

Às vezes temos a sorte de encontrar estas conchas com pérolas que iluminam a nossa memória, e voltamos a ser o rapazinho que em frente à janela fantasiava os sonhos nas árvores, nas casas, nas pessoas, nos carros. Talvez fosse isso que Pessoa quisesse dizer com "os beijos merecidos da Verdade".

02
Jan11

Brook, o teatro e nós

jorge c.

A saída de Peter Brook do teatro parisiense não é irrelevante, sobretudo quando falamos em 36 anos. Mas, é de assinalar a marca deixada pelo inglês como seria de qualquer outro encenador/produtor que deixa a sua assinatura na forma de fazer teatro. Em Portugal, a permanência de encenadores durante muitos anos no mesmo teatro, ou na mesma companhia, significa muitas vezes um acomodamento negativo, quando deveria antes significar um estilo dentro de uma diversidade de estilos.

Podemos aprender muito com estes 36 anos de Brook em Paris pelo seu vanguardismo e pelo trabalho inovador constante. Uma das formas de suportar essa mesma constância é a natureza do financiamento, e se calhar é mesmo essa discussão que temos de recomeçar. E as escolas, claro, sempre as escolas. São já três tópicos de discussão: o estilo e a diverdidade de estilos, o financiamento e as escolas.

14
Nov10

Do Teatro e da Civilização

jorge c.

Uma das maiores características do Teatro é a de ir ao fundo do poço da civilização e encontrar a génese do problema. Durante séculos assistimos a uma dramaturgia inspirada em idiossincrasias e costumes. O génio dessa dramaturgia encontra-se na sua subtileza e na relação abstracta que está subjacente ao caso concreto. Talvez por isso se distinga uma tragédia de um drama, pois se damos valor à situação concreta temos um drama, um artigo novelesco, e não uma tragédia esmagadora e brutal. O Teatro trata, por isso, as questões de fundo, os princípios e os valores que uma sociedade resolveu atirar pelo cano abaixo.

Podia entrar num registo pessimista criticando o que se vai fazendo agora. Mas, parece-me mais relevante observar que é a nossa falta de entendimento dos clássicos que é mais grave. Se não compreendermos que Otelo é sobre a dúvida e não sobre uma intriga amorosa ou que D. Juan é sobre a hipocrisia e não sobre a promiscuidade, dificilmente encararemos a nossa própria vida de forma lúcida. Porque não ter discernimento para distinguir os princípios da espuma dos dias é estarmos alienados do que realmente importa.

A vida, como o Teatro, não é uma novela.

25
Jun10

Grand Jacques

jorge c.

 

Parece que Brel passou pelos Açores. Mas, que história poderia sair daqui? O que pode ter acontecido de tão extraordinário para que esse facto, esse simples facto, fosse motivo para um espectáculo? Fica-se quase com a sensação que estamos perante um daqueles golpes saloios de promover o turismo. "Vá para fora cá dentro. Olhe que o Brel foi e lá ficou". Pois ficou. Porque estava doente. E desse imprevisto nasceu uma pequena história de universalidade, de existência crua e simples, na cabeça de Nuno Costa Santos.

Brel nos Açores é, acima de tudo, uma obra de uma generosidade única em que o autor nos oferece o seu olhar mais intimista e nos diz com alegria "vejam, vejam como ele era por dentro, vejam o que eu vi". E essa oferta genuína reflecte-se ao longo da peça com momentos de uma agressividade tal que deviam ser proiíbidos. Quase que era necessário colocar um aviso à porta a prevenir as pessoas de que "este espectáculo contém cenas e linguagem que podem ferir a sua alma de forma irreversível. Tenha cuidado, amigo!"

Para este efeito é fundamental compreender quem está no palco. Dinarte Branco é o actor ideal para o espectáculo. Um olhar que galopa entre o melancólico, o colérico, o doce e o distante. Dinarte consegue ser dois ou três narradores diferentes dando relevo à figura de Brel como que o deixando sempre no centro da espiral de emoções que andam por ali. É, ele próprio, os olhos de Brel e também a sua boca e os seus gestos mais contidos, o seu cinismo agreste e a sua necessidade de partir.

Mas não se monta um espectáculo destes. Um cenário improvável e impraticável.

Revela-se mais uma vez a sua qualidade numa cenografia simples, minimalista e com uma dinâmica livre que começa por envolver o público e ligá-lo ao actor, carregando-o lentamente para o palco num movimento de elevação da personagem. E essa dinâmica livre poderia chocar com a tensão das palavras de Brel muito bem traduditas, diga-se, se me permitem o neologismo. Pelo contrário, há uma harmonia plena na narrativa, como uma onda que nos tira o peso do corpo e nos transporta, a nós e ao desconforto, mar adentro. Uma onda Breliana, como diria o Nuno. Não fosse este espectáculo uma grande parte de si mesmo.

 

Está lá até Sábado, no S. Luiz. Não hesitem. Seria uma perda irreversível.

 

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