A espuma dos dias
Este é um título gasto. Não vou abusar pornograficamente dele. Até porque a espuma dos dias que correm lembra as marés poluídas reproduzidas nos livros da escola instruindo-nos para um planeta melhor. Sejam bons meninos, não deitem lixo para o chão, não liguem o sistema de rega quando não é nesserário e todas essas recomendações que julgamos que todos apreenderam da mesma maneira. Duas pessoas de boa fé com a mesma informação blábláblá vocês sabem o resto. A escola ensina-nos o pensamento abstracto, desde a nossa relação com o meio físico e social até à matemática, relacionando as duas ao ponto de percebermos que 2-1 pode não ser 1 e ser mesmo dois um, algo que temos de aceitar no sentido de sairmos ridicularizados, mesmo na nossa própria casa e então sejam bons meninos, não deitem lixo para o chão, não liguem o sistema de rega, nem apaguem as luzes para as voltar a acender logo depois porque o gasto de energia é maior. Coisas simples, lógicas, para uma convivência saudável tout court. Mas parece que a equação das duas pessoas de boa fé com a mesma informação blábláblá vocês sabem o resto não tem o resultado esperado. Aquilo que define as pessoas não é o que elas aprendem, mas a forma como o usam, o seu carácter e todas essas características que inevitavelmente acabamos todos por ter em excesso no dia em que vamos ao encontro do criador; um currículo sobrevalorizado pelos nossos pares e que nem sempre tem assento parlamentar. Senhor deputado, tem a palavra. E já que ma dão, que expressão tão bonita, queria aproveitar para agradecer à minha família e a todos os que contribuíram para este momento em que me apercebo mais uma vez que a espuma dos dias é a revelação de que nem sempre o pensamento abstracto que nos ensinam a todos na escola, a nossa relação matemática com o meio físico e social a partir da comunicação gramática, a nossa memória histórica imputada, resultam no mesmo e acabamos por usar os instrumentos que temos de forma despropositada, desadequada, mesquinha, pequena. Foram conselhos que não ouvimos, aulas a que faltámos, confusões de conceitos, sabe-se lá o que é que acontece a uma criança quando está sozinha. É por isso que lhes dizemos sempre sejam amigos, sejam bons meninos, não deitem lixo para o chão, não liguem o sistema de rega, nem apaguem as luzes para as voltar a acender logo depois porque o gasto de energia é maior, não mintam a ninguém, nem mesmo a vocês próprios, valores em escala que julgamos apreendidos. É lançá-las no mundo para serem pessoas melhores para elas próprias, sem ressentimento, sem rancor. E quando é preciso que um acontecimento mediático e evidente nos prove isso, quando achamos que isso vai nos tornar a todos em criaturas mais conscienciosas, regressa o ódio e o cheiro da vingança como lixo das fossas que desembocavam na praia de Matosinhos quando eu tinha doze anos, e ali ficava uma espuma escura, colorida mas escura. Era impossível que parecesse bem a alguém.