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Manual de maus costumes

Manual de maus costumes

04
Abr11

A espuma dos dias

jorge c.

Este é um título gasto. Não vou abusar pornograficamente dele. Até porque a espuma dos dias que correm lembra as marés poluídas reproduzidas nos livros da escola instruindo-nos para um planeta melhor. Sejam bons meninos, não deitem lixo para o chão, não liguem o sistema de rega quando não é nesserário e todas essas recomendações que julgamos que todos apreenderam da mesma maneira. Duas pessoas de boa fé com a mesma informação blábláblá vocês sabem o resto. A escola ensina-nos o pensamento abstracto, desde a nossa relação com o meio físico e social até à matemática, relacionando as duas ao ponto de percebermos que 2-1 pode não ser 1 e ser mesmo dois um, algo que temos de aceitar no sentido de sairmos ridicularizados, mesmo na nossa própria casa e então sejam bons meninos, não deitem lixo para o chão, não liguem o sistema de rega, nem apaguem as luzes para as voltar a acender logo depois porque o gasto de energia é maior. Coisas simples, lógicas, para uma convivência saudável tout court. Mas parece que a equação das duas pessoas de boa fé com a mesma informação blábláblá vocês sabem o resto não tem o resultado esperado. Aquilo que define as pessoas não é o que elas aprendem, mas a forma como o usam, o seu carácter e todas essas características que inevitavelmente acabamos todos por ter em excesso no dia em que vamos ao encontro do criador; um currículo sobrevalorizado pelos nossos pares e que nem sempre tem assento parlamentar. Senhor deputado, tem a palavra. E já que ma dão, que expressão tão bonita, queria aproveitar para agradecer à minha família e a todos os que contribuíram para este momento em que me apercebo mais uma vez que a espuma dos dias é a revelação de que nem sempre o pensamento abstracto que nos ensinam a todos na escola, a nossa relação matemática com o meio físico e social a partir da comunicação gramática, a nossa memória histórica imputada, resultam no mesmo e acabamos por usar os instrumentos que temos de forma despropositada, desadequada, mesquinha, pequena. Foram conselhos que não ouvimos, aulas a que faltámos, confusões de conceitos, sabe-se lá o que é que acontece a uma criança quando está sozinha. É por isso que lhes dizemos sempre sejam amigos, sejam bons meninos, não deitem lixo para o chão, não liguem o sistema de rega, nem apaguem as luzes para as voltar a acender logo depois porque o gasto de energia é maior, não mintam a ninguém, nem mesmo a vocês próprios, valores em escala que julgamos apreendidos. É lançá-las no mundo para serem pessoas melhores para elas próprias, sem ressentimento, sem rancor. E quando é preciso que um acontecimento mediático e evidente nos prove isso, quando achamos que isso vai nos tornar a todos em criaturas mais conscienciosas, regressa o ódio e o cheiro da vingança como lixo das fossas que desembocavam na praia de Matosinhos quando eu tinha doze anos, e ali ficava uma espuma escura, colorida mas escura. Era impossível que parecesse bem a alguém.

02
Abr11

Uma descoberta recente

jorge c.
Identity
 
When Hans Hofmann became a hedgehog
somewhere in a Germany that has
vanished with its forests and hedgerows
Shakespeare would have been a young actor
starting out in a country that was
only a word to Hans who had learned
from those who had painted animals
only from hearing tales about them
without ever setting eyes on them
or from corpses with the lingering
light mute and deathly still forever
held fast in the fur or the feathers
hanging or lying on a table
and he had learned from others who had
arranged the corpses of animals
as though they were still alive in full
flight or on their way but this hedgehog
was there in the same life as his own
looking around at him with his brush
of camel hair and his stretched parchment
of sheepskin as he turned to each sharp
particular quill and every black
whisker on the long live snout and those
flat clawed feet made only for trundling
and for feeling along the dark undersides
of stones and as Hans took them in he
turned into the Hans that we would see
 
W.S. Merwin
01
Abr11

Não há só fados no S. Luiz

jorge c.

Ir ao S. Luiz, por si só, já é um sucesso garantido. Um sala que recebe tão bem e com a sua qualidade técnica é, por si só, uma vitória. Mas como em tudo na vida não fazemos nada sozinhos, não somos completos.

A noite desceu quente sobre Lisboa. O cheiro da Primavera é perfume adequado para estes serões que nos abraçam com uma ternura inigualável. São as noites propícias à sensualidade das danças, das guitarras desgarradas que arranham a calçada e a partem sem piedade. Calçada que se estende de Lisboa a Paris ou a Buenos Aires querida através de uma voz de veludo que nasceu a cantar, sem esforço, torcendo a alma como um pano velho, o inevitável fado que nos mói, desconforto ou inquietação sem o qual não sabemos viver. Assim se completa o espaço com um corpo que se move pelo palco com uma delicadeza sincera nos gestos provocando arrepios e sorrisos. E quando se move, Cristina Branco dança e reage às palavras que se vão trocando como por mera brincadeira, como um jogo de significados entre as línguas; uma nova linguagem entre a guitarra portuguesa e o acordeão; uma nova linguagem entre a língua de Camões e a de Baudelaire que se cruzam num tango paciente e cheio de luz. Vem daí a doçura nos dedos de Laginha por breves instantes que parecem uma eternidade. É aí que ficamos, na eternidade desta beleza, deste conforto, em estilhaços.

 

01
Abr11

A invenção da mentira*

jorge c.

Nunca achei piada ao 1 de Abril. Todos os anos a mesma conversa: o dia das mentiras para aqui e para ali, piadinhas estafadas com a política e a bola e por aí fora. Até o jornais fazem a sua partidinha marota. Tem imensa graça. Todos os anos. Um dia reservado para mentiras como se o mundo fosse um lugar onde elas não existissem e tivéssemos de tirar um dia diferente do habitual. 

Todos os dias inventamos desculpas para escapar a compromissos, inventamos memória, ficcionamos o nosso quotidiano e reforçamos a nossa personalidade com factos inexistentes. Mentir não é senão a única forma de alterarmos a nossa realidade como melhor nos convém. Isto não tem de ser necessariamente mau. Mentimos para não sermos inconvenientes ou cruéis, por exemplo. Mentimos para agradar aos outros ou até mesmo para não prejudicar ninguém, num esforço altruísta muitas vezes inconsciente.

A mentira é também a defesa da nossa intimidade, a nossa muralha para defender fragilidades, defeitos ou vícios que não queremos expostos a qualquer um. Fazemos dela uma forma de nos adaptarmos ao meio. No limite, estamos sempre a ir contra a nossa natureza e a inventar a mentira todos os dias expurgando-lhe o pecado e dourando-a com a necessidade.

Tornámos este dia numa efeméride aborrecida. A minha irmã faz anos hoje, por exemplo, e sempre que o digo a alguém, está-se mesmo a ver o seguimento da conversa. Anos e anos disto. É aborrecido.

Se o 1 de Abril continuasse a ser uma forma de gozar os franceses, confesso que me sentiria mais tentado a comemorá-lo. Assim, só me resta desprezá-lo.

 

*Título roubado ao filme de Ricky Gervais.

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