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Manual de maus costumes

Manual de maus costumes

30
Abr13

esperando o sol

jorge c.

Acordam todos os dias sem raios de sol. É noite por dentro porque é noite por fora. Atravessam para a outra margem entre os pares. Atravessam de barco, de carro, de comboio, de camioneta. Duas horas, três horas. Os filhos pelo braço. Todos os dias, as horas perdidas para chegar a casa e encher a boca à pressa, os trabalhos de casa, da casa, que nunca vão acabar; a noite a passar num instante e a roupa para passar. Rimam o desalento com a ginástica orçamental. Pequena valsa. Depois, aparecem os abutres, mesmo no dia, para lhes comer a pele com o cinismo histérico da militância. "Isso, ide para a praia!", "Isso, ide gritar para as ruas!"; "Fascistas!", "Comunistas!"; "E o povo a sofrer!", "E a crise por pagar!". Pois é, o povo, pois é. O povo que também precisa de descansar, que já mal consegue gritar, porque quando grita é bruto e quando não grita é frouxo. Acordam todos os dias sem raios de sol. Que força é essa?

22
Abr13

Carta aberta a Miguel Gonçalves

jorge c.

Caro Miguel Gonçalves,

 

Permita-me que não o trate por tu. Gosto de formalismos. Com eles, habituamo-nos ao recato, à cautela e a uma estratégia honesta de relação com os outros.

Mas, não lhe escrevo para conversar sobre formas de tratamento. Não lhe quero tirar tempo desnecessário às suas actividades. Louvo, até, essa energia e questiono-me como seria a minha vida se o meu objectivo fosse, tal como o seu, trabalhar para enriquecer muito, pornograficamente, nas suas palavras. Admiro imenso.

Dirijo-lhe esta carta, antes, para lhe mostrar o meu desagrado (repúdio, até) pelas suas pornográficas palavras no jornal i, de hoje. Para mim, a pornografia nas ideias, nas palavras e nos actos é uma forma pouco elegante e explícita de fazer o que quer que seja. A pornografia é grosseira e bruta. Não conhece as maravilhas do sonho. 

Eu compreendo que esta seja a linguagem do exagero que necessita para fazer o seu negócio. Julgo que é psicólogo de formação, não é verdade? Acho extraordinário que utilize essas ferramentas para vender uma ideia constante aos seus clientes. E que boa altura, esta, em que as empresas estão tão permeáveis aos artigos e livros de auto-ajuda que Harvard vomita todos os dias.

Contudo, um país não é uma empresa, Miguel. Eu compreendo que não saiba, nem queira saber nada de política, como muito bem afirma. A cidadania não é nenhuma obrigação e nunca levou o pão para a mesa de ninguém. Mas, se assim é, então seria mais coerente e lógico que não se envolvesse em questões políticas, como um programa lançado por um governo que tem, para a infelicidade da humanidade, uma natureza política. Aliás, quando afirma que "Isso (a perversão do mercado) seria outra discussão que nos levaria para sítios imprevistos", fico sem saber se o Miguel tem estrutura social, cultural e intelectual para discutir tal assunto. Porque tal assunto, Miguel, é pura política.

Posto isto, e resolvida a questão da sua fragilidade sociológica e intelectual, vamos ao que interessa porque, certamente, já está a ficar nervoso sem resultados efectivos. Ainda o tenho comigo? Vamos a isso.

Assumo que o Miguel, por não perceber nada de política, não tenha, então, muita sensibilidade para a matéria social. Gostaria de lhe dizer que a taxa de desemprego em Portugal aumentou mais de 10% nos últimos 4 anos. Esta situação é um reflexo da redução do staff das empresas, políticas de contenção de custos realizadas através de despedimentos colectivos, extinção de postos de trabalho (postos estes muitas vezes vendidos pelos gurus dos anos 90 para convencer as empresas que a tendência, na altura, era outra), degradação do sector industrial, mercado insuficiente e pouco competitivo para absorver determinados recursos. Esta informação pode encontrá-la, com alguma facilidade, nos jornais. Se tiver tempo, dê uma vista de olhos. É que as reportagens servem, fundamentalmente, para dar visibilidade a realidades que as pessoas muito ocupadas não têm tempo para apanhar da rua. Sabe, temos um grande problema de iliteracia em Portugal. Disponibilizam-se ferramentas mas, desvalorizam-se os valores e princípios que determinaram a sua funcionalidade. Estamos, aliás, perante o primado da funcionalidade. Não quero maçá-lo com questões filosóficas. Se, entretanto, lhe estiver a doer a cabeça, diga. Arranjo-lhe um comprimido, sem precisar de me pagar por este meu acto solidário disruptivo. 

Bem sei que esta minha carta peca por falta de assertividade. Poderia ter-lhe dito que a sua generalização no que respeita aos desempregados é de uma inacreditável falta de sensibilidade e representa, até, tudo aquilo que é contrário aos mais básicos valores da humanidade. Poderia dizer-lhe que está a utilizar uma ferramenta política do Estado para promover o seu trabalho, tendo o seu retorno com a publicidade e que isso é, de certo modo, pornográfico. Poderia dizer-lhe que é um palerma e que o seu tempo, como o de todos os outros self-proclamed gurus (curtiu do anglicismo?) chegará ao fim. Porque a sociedade, apesar de gostar de ser enganada por vendedores de banha de cobra, acaba por procurar conforto na bondade, na solidariedade e na fraternidade. 

A vida, Miguel, foi feita para ser desfrutada e o objectivo é que sejamos todos eroticamente felizes. 


Despeço-me com cordialidade,

Jorge C.

09
Abr13

quero o meu dinheiro de volta

jorge c.

Estes dois (I, II) maravilhosos artigos, escritos por dois estimáveis cavalheiros, fizeram-me regressar, primeiro, à infância e, depois, ao final da adolescência. Margaret Thatcher faz parte do meu imaginário continuado e, por vezes, inquieto.

No dia da sua morte (ontem), dei comigo a pensar na maneira como Thatcher contribuiu para a mudança de mentalidade política no mundo ocidental, ao mesmo tempo que me obrigo a questionar o preço de certas mudanças e o preconceito obstinado. Os seus herdeiros - pequenos vagabundos ideológicos, muitas vezes - não compreendendo que as épocas determinam as políticas, professam o seu liberalismo de forma algo desadequada. 

A Europa tem, hoje, outro cenário. E é ao lado mais negro de Thactcher que está a ir beber. A esse seguidismo superficial, falta a manifestação do crescimento.

Despeço-me dela dizendo: quero o meu dinheiro de volta. 

08
Abr13

uma pergunta inocente

jorge c.

Tenho andado a pensar nas declarações do Primeiro-ministro sobre o acórdão do Tribunal Constitucional. Uma elegância. 

Como, desde então, ainda não tinha recuperado os sentidos todos, não me consegui expressar até agora. Acontece que já tudo foi dito sobre este assunto, e passo apenas a destacar a carta aberta do Tiago Antunes ao Sr. Presidente da República.

Resta-me, apenas, uma questão: aqueles que, à semelhança de Pedro Passos Coelho, acreditam que o Tribunal Constitucional aprofundou a crise, tendo interferido na política do Estado, também se revoltaram contra as agências de rating e, em abstracto, contra os mercados?

Vou guardar para mim a diferença entre os dois tipos de instituição para não condicionar respostas.

07
Abr13

a lei fundamental do meu país

jorge c.

A História, a grande literatura, o cinema e o teatro ensinaram-nos que, em tempo de guerra, a transgressão dos limites da lei acontece por dois motivos: a necessidade e o oportunismo. A fronteira entre os dois é, muitas vezes, imperceptível. À falta de memória histórica ou de consciência cívica, a arte ajuda-nos a compreender essa fronteira e a desenvolver, em nós, uma especial sensibilidade (ou capacidade de sofisticação) para a realidade económica, social e cultural dos nossos dias. 

A decisão do Tribunal Constitucional, relativamente a 4 (quatro) artigos do Orçamento de Estado para 2013, levantou um conjunto de reacções que nos transporta directamente para a situação acima descrita. Não sei se por pânico, excesso de drama ou apenas por ideologia (não se deveria chamar ideologia a determinado tipo de lugares comuns mas, adiante), generalizou-se um movimento contra a Constituição da República Portuguesa. Este movimento irreflectido e espontâneo, de certo modo medieval, é consequência de alguma incapacidade de sofisticação mas, sobretudo, da instrumentalização de determinados conceitos por pessoas que deveriam ter mais sentido de responsabilidade cívica.

Veja-se a teoria da tridimensionalidade constitucional e, em particular, a Realidade Constitucional. Entende-se que a Realidade Constitucional é a dinâmica própria da sociedade que, muitas vezes, se afasta da matéria fixada na lei. A Realidade Constitucional não pode ser encarada como uma breve necessidade que nos obriga a redefinir a estrutura constitucional por mero oportunismo. Uma das características fundamentais de uma lei constitucional (da lei, no geral) é a sua dogmática. Ela ajuda-nos a garantir a segurança jurídica necessária à estabilidade social e económica (portanto, política). 

O ataque à estrutura constitucional é, com efeito, um ataque à segurança de um regime e às suas garantias. Ao permitir que a lei fundamental de um país seja alterada por mero oportunismo, abre-se um precedente que conhecemos bem de 1933, por exemplo. A Realidade Constitucional nunca pode ser confundida com Realidade Económica. O termo constitucional é muito mais amplo e envolve um conjunto de valores não só económicos mas, também, sociais e culturais. 

Quando nos esquecemos do nosso dever cívico por razões de combate político pouco sustentado, arriscamo-nos a abrir uma ferida profunda na forma que queremos dar ao país em que vivemos. Orientados pela raiva, pelo ódio e pela obstinação político-partidária, perdemos o discernimento e deixamos de reconhecer o que nos trouxe até aqui: a necessidade de vivermos num país livre, justo e em harmonia. 

E, já agora, o Governo não tem de se demitir. O Governo tem de governar mais e dramatizar menos. O Governo tem de ser menos piegas. 

05
Abr13

a trova do vento que passa

jorge c.

1. Aproveitando uma doença terrível, fiquei a ver o debate quinzenal de hoje. Toda uma conjuntura decadente. 

Estamos condenados a ter duas figuras medíocres como Passos Coelho e António José Seguro. O nível de vacuidade na troca de palavras entre os dois, a falta de interesse e relevância real das alegadas ideias e a verve pobre e ordinária assumem o tom trágico deste tempo que vivemos, a fotografia burlesca da falta de esperança e de futuro de todo um país. Depois da mise en scéne da demissão de Relvas, o Primeiro-ministro escolhe um tema de debate quinzenal que lhe dava espaço para esgotar Seguro. E Seguro caiu, claro. A questão sobre as maturidades torna isso uma evidência. António José Seguro é uma nulidade com uma ambição de poder desadequada das suas reais capacidades. Estamos desgraçados.

 

2. O Sr. Presidente da República apresenta-se num estado de morbidez política nunca antes visto. Escondido atrás de um institucionalismo serôdio, Cavaco Silva é incapaz de se afirmar como Presidente da República, o lugar que os portugueses lhe atribuíram, confiantes que ele teria uma vaga ideia da componente política necessária para o exercício dessas funções. A falta de credibilidade do Executivo, a instabilidade evidente da coligação, os constantes erros nas previsões económicas e incoerência discursiva deste PSD em confronto com o PSD de 2011 deveriam, talvez, despertar em Cavaco Silva alguma curiosidade científica.

 

3. A demissão de Miguel Relvas é, a meu ver, uma farsa para aguentar o Governo. Crato passa por bode expiatório, o caso da licenciatura faz ruído e Relvas passa incólume pela inevitável remodelação ministerial, evitando a evidência da fragilidade das escolhas políticas de Passos. Este é o esquema mental de uma espécie de políticos que nascem dentro dos aparelhos e crescem a viver disputas pouco relacionadas com o interesse e o serviço público. São esquemas.

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