O culto do chefe
Independentemente dos cenários possíveis após a votação para o Orçamento de Estado, há algo que se torna cada vez mais evidente: há um vazio de potencial governativo em Portugal. O desgaste do Primeiro-ministro dá-nos a entender que é pouco provável que este aguente a legislatura toda. Confesso que acreditava que era possível, mas a situação agravou-se e Sócrates perdeu (ou pelo menos parece-me que perdeu) dinâmica de liderança.
É provável que dentro do PS surja uma crise identitária na era pós-Sócrates. Este não é um tema novo. Prevê-se que o PS passe pelo mesmo que o PSD passou depois de Cavaco. Tornar-se-á necessário eleger alguém para liderar os socialistas. Esta necessidade é um vazio de poder.
Concluímos com facilidade que o culto da personalidade dentro dos partidos provoca esse mesmo vazio. E é exactamente na disputa intra-partidária que ele nasce. Seja no PS ou no PSD, no PCP ou no CDS, todos os partidos sem excepção escolhem um líder e não uma comissão política e uma proposta de poder. É claro que, quando chegam as legislativas, os eleitores vão escolher o Primeiro-ministro, dando mais valor à figura que lidera do que ao conjunto de pessoas que patrocinam um projecto político. Veja-se que Passos Coelho até dizia há dias que não tinha pressa de se candidatar a Primeiro-ministro. A tendência para esta situação é tal, que o líder do PSD até se esquece que no sistema eleitoral português ninguém se candidata a Primeiro-ministro.
Perante este cenário real percebe-se a gravidade dos cenários hipotéticos de que falava no início e em todos os outros em qualquer outra circunstância. O sistema semi-parlamentar em que vivemos precisa de uma efectividade material. Para isso é necessário que o Povo o realize. O que acontece é que estamos a viver num sistema semi-presidencial onde existem, em rigor, dois presidentes. O enfraquecimento de um pela conjuntura financeira e de outro por questões formais das limitações ao seu poder - a proximidade das presidenciais e o impedimento de dissolução do Parlamento - faz com que se gere instabilidade na forma de executar o poder. Quando nos limitamos a substituir um deles não estamos a mudar nada, estamos apenas a contribuir para a decadência do sistema.
Seria importante que esta discussão fosse levada a sério dentro dos partidos. Receio que este meu desejo de nada valha, pois torna-se óbvio que a preocupação dos aparelhos é alimentar este sub-sistema cada vez mais dominante. A crise também passa por aqui.