No fundo do mar
Não sei o que está na fronteira entre os sonhos e a fantasia. Sei, porém, que a fantasia é metafórica e que nos ajuda a crescer, a pensar em abstracto, a desenvolver a nossa percepção e os mecanismos para construirmos a nossa própria escala. Poucos são os que, a partir de uma narrativa fantástica, criam um factor pedagógico. A grande maioria prefere a infantilização. Por cá, tivemos a sorte de ter Sophia e José Gomes Ferreira.
Dos sonhos, desse lugar mais utópico de que mágico, ficamos com pouco mais do que uma idealização. O sonho embala as ideias e é, quase sempre, uma pretensão egoísta. Mas, deles podemos tirar uma estética terna, melíflua, ao mesmo tempo que negra e nublosa.
Nas "Histórias da Terra e do Mar", Sophia misturou estes dois universos, sem branduras. Gomes Ferreira fez o mesmo no "João Sem Medo". Até na fantasia existe adversidade e pode haver uma cortina de fumo - um sonho onde descobrimos a claridade. É algures nessa pedagogia que está a tal fronteira tão difícil de encontrar e que nos seduz, que nos leva à música, às letras e à encenação. Ora, não é fácil imaginar o imaginário que já por si só é tão perfeito. Representar qualquer um destes autores torna-se uma tarefa hercúlea.
Podemos, contudo, juntar dois ingredientes improváveis e fazer do imaginário uma representação fiel da fantasia e do sonho, recorrendo ao mais belo dos minimalismos. Foi precisamente este espectáculo que o Teatro S. Luiz montou, de forma muito feliz, com Bernardo Sassetti e Beatriz Batarda.
É como um bailado entre os dois universos. A irreverência ternurenta de Batarda contando a história da Menina do Mar, alimentando a fantasia, dizendo todas as palavras e todas as onomatopeias com a fragilidade e a delicadeza que isso importa. A cortina de sonhos enrolados e escuros como um coral sombrio no fundo do mar que nasce dos gestos leves de Sassetti - um nevoeiro constante que mistifica a rotina - desnorteia-nos e adormece-nos o adulto.
Às vezes temos a sorte de encontrar estas conchas com pérolas que iluminam a nossa memória, e voltamos a ser o rapazinho que em frente à janela fantasiava os sonhos nas árvores, nas casas, nas pessoas, nos carros. Talvez fosse isso que Pessoa quisesse dizer com "os beijos merecidos da Verdade".