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Manual de maus costumes

Manual de maus costumes

28
Dez12

as minhas coisas favoritas

jorge c.

Em alturas como esta oferece-se dizer que só valorizamos as coisas quando as perdemos. Mas, logo viria alguém discutir o lugar comum e a falta de sofisticação, a pouca urbanidade da coisa e a necessidade de seguir em frente. É a chamada ética dos fúteis. 

É uma merda perder as coisas. É uma merda que sejamos poucos a tentar mobilizar as pessoas para os lugares que sabemos mágicos, onde o tempo não passa e se mantem estático para que, então, uma certa transcendência nos coloque os olhos no futuro. É isso que o Jazz nos faz. É o mais perfeito instrumento da consciência livre.

Pouco pretensioso, o jazz é da rua, é dos bares generosos. Quando as ruas e os bares perdem o jazz, nós perdemos um pouco mais de liberdade, de oportunidade para lançar a conversa num precipício interminável, empurrada pela enxurrada de uísque e de fumo livre.

Hoje, de manhã, acordei com uma notícia amarga. O Catacumbas - o último speak easy, digno do nome, na cidade - fechará em fevereiro. Talvez seja mais uma das consequências do tempo que vivemos. A crise. Porém, pergunto-me se a verdadeira crise não será a mesma história de sempre: a desvalorização das coisas, a troca do brinquedo velho pelo novo, a ditadura da novidade e do trendy e assim sucessivamente. 

Este é o meu maior ressentimento, não o nego. Porque não gosto de perder as minhas coisas favoritas. 

 

 

Até jazz, Manel.

15
Mai11

Há metafísica bastante na Emel

jorge c.

Sobre o que é a esquerda e a direita tive muitas discussões com amigos ao longo dos anos. Porém, nenhuma distinção terá sido tão perfeita como aquela que RPS deu certa noite, à mesa de jantar. Disse o meu amigo que aquilo que distinguia as duas é que a esquerda não gosta da polícia e a direita não gosta dos polícias. A simplicidade desta distinção é tão maior quanto a sua assertividade. A partir de então, sempre que a discussão ressurgiu, citei sempre RPS. Confesso que o impacto não tem sido o esperado. Talvez não se dê assim tanto valor a metáforas tão simples (o que é uma pena), ou talvez muitas destas pessoas não tenham experimentado um acontecimento onde fossem confrontadas com esse factor de separação das imensas águas territoriais que rodeiam a sua natureza ideológica. São experiências que nos põem à prova.

Pois comigo, aconteceu, já lá vão cinco dias, passar por uma experiência próxima que me fez questionar o território em que me situo. Um desafio a que não soube responder imediatamente com a maior das seguranças, mas a que a metafísica, como sempre, ajudou a esclarecer. Estava eu, portanto, a encaminhar-me para o carro quando ao longe reparo que à sua volta se entrelaçava uma fita amarela. Praguejei, insultei e perdi noção de tudo o resto. Recompus-me para resolver o assunto. No vidro a informação no autocolante era clara e precisa: 90€ = 30€ de multa + 60€ para desbloquear o veículo. Enquanto aguardava que os cavalheiros da empresa municipal regressassem para me desbloquear o carro fui pensando nos motivos da minha - agora - bancarrota. Assumi o meu erro: não paguei o estacionamento pelo que me bloquearam o carro por falta de ticket. Pouco ou nada interessam as razões. Não paguei e este é um erro sancionável. Mas se a coima existe antes do bloqueio, por que razão não me haviam dado hipótese de ser apenas multado? A simultaneidade das sanções fez-me questionar a seriedade da instituição.

Chegados os funcionários da empresa municipal (uma autoridade em matéria de estacionamentos), tentei ser o mais cordato e gentil possível. O tempo que esperei fez-me pensar que aqueles homens apenas cumpriam regras e as suas funções seriam meramente administrativas, sem espaço para discricionariedades. Não deveria obrigá-los aos meus maus instintos, nem às minhas desculpas. Também não valeria a pena mostrar que era um cidadão cumpridor e que umas semanas antes teria até - diz-se - entregue um ticket a um desconhecido por ainda restar tempo de estacionamento. Esses desabafos da moralidade ficam para Deus ou para a edilidade. Paguei, despedi-me e desejei um bom dia de trabalho. Uma simpatia e adeus 90€.

Não tinha razão para me chatear com quem apenas fazia o seu trabalho. Estava então revoltado com a instituição "Empresa Municipal de Estacionamento", uma entidade fantasmagórica que habita no imaginário dos locais tanto pelo desprezo que lhes merece como pela raiva que lhes suscita. Repito que a minha revolta não se devia à sanção em si, mas sim à simultaneidade de sanções que me pareceu desadequada e, de certo modo, perversa. Teriam aqueles homens responsabilidade na adequação da sanção ao caso concreto, ou estariam apenas a seguir ordens específicas? A dúvida. Estaria eu, pela primeira vez, confrontado com a possibilidade de ter um problema com a instituição e não com o indivíduo? Ah! A metafísica!

A dúvida resolve-se quando invocamos questões de princípio. Todas as instituições que impõem acções a partir de regras, devidamente escrutinadas, têm de fazê-lo em proporção do erro cometido. Se houver um aproveitamento do princípio da proporcionalidade, a regra geral estará a ser pervertida. A responsabilidade nesta matéria é do agente que aplica a regra. Mesmo que envolva hierarquia e ordem superior, o agente tem uma escolha: cumprir ou perverter o sentido nuclear da regra. Se a filosofia da empresa, neste caso, é servir os cidadãos (e que no caso específico será bastante discutível), a perversão das suas regras implica um prejuízo para os cidadãos, uma perda de confiança institucional, em abstracto. Perde-se o valor institucional à conta da cobardia do agente local.

Depois desta reflexão respirei de alívio. RPS ainda tinha razão, ou o mesmo será dizer que eu ainda navegava pelas mesmas águas, sem ilusões ou confusões do território. E de repente todos aqueles adágios repetidos à exaustão fazem sentido: a árvore e a floresta, a andorinha e a primavera. A questão de princípio será sempre a mesma: a instituição nasce pura, o homem é que a corrompe.

03
Mai11

A puta da subjectividade

jorge c.

Só lhe via as pernas. A ambulância ia-se fazendo ouvir do outro lado da Praça. Dois homens gesticulavam com veemência e outros dois e uma senhora, sentada, estavam ao pé do corpo que caiu ali discreto numa das paragens de autocarro. Talvez uma quebra de tensão. Com a chegada da emergência médica aproximam-se mais uns quantos transeuntes oriundos de outras paragens. Um polícia municipal ignora o acontecimento e segue em passo apressado para qualquer parte. Metem o homem na maca. Agora reparo que é um homem, talvez um septuagenário, mas muito próximo dos 80. A mulher que estava sentada acompanha-o. Um dos homens da emergência médica pede-lhe alguns dados e sugere-lhe qualquer coisa conduzindo-a até parte incerta. Os mirones continuam em cima do acontecimento e ao meu lado uma senhora irrita-se com a burocracia da acção médica: com o marido foi assim uma série de vezes, era cardíaco (acendo um cigarro). No topo da ambulância lê-se Ministério da Saúde. Não fosse o autocarro para Almada servir perfeitamente o seu destino e o homem acabaria por morrer por culpa do Governo. Lá vai ela, nem um adeuzinho, nem nada. Então adeus, minha senhora, cumprimentos à vítima. A ambulância também parte e na rua fica um ar carregado. O meu autocarro chega. Lá dentro os dois homens (mais um camarada) que haviam orientado a chegada da ambulância vão conversando animadamente. Mataram o Bin Laden. De manhã, a mesma conversa. Acorda, mataram o Bin Laden. Na América festejam.

17
Abr11

ob-la-di ob-la-da

jorge c.

Tudo igual, no burgo. Hoje é Domingo. Sereno, o sol queima as roupas da catequese e silencia as ruas. Já se vêem as cavacas nos saquinhos de feira, já se cheiram as maias nos baldios e permanece o cheiro beato da água benta junto da porta da igreja. Está tudo igual. Uns morreram, outros emigraram, outros descasaram e muitos vão-se bebendo por entre os dias. Life goes on. Não há nada como uma crise. Se houvesse uma rainha das desculpas para as nossas castrações a crise estaria seguramente isolada a mais de 20 pontos da 2ª classificada. Isto está muito mau, Jorge. Pois está. Nunca esteve assim. Pois não. Houve um tempo em que fomos novos e o sol tirava-nos de casa. O rock soava todo o dia até de madrugada e acordava nas ruas de energia renovada. Talvez aquilo que nos faltou - uma renovação constante. Life goes on.

21
Mar11

Sol Poente

jorge c.

Quando o primeiro sol da Primavera se põe por detrás dos prédio que ocupam agora o minifúndio que separava a parte mais pobre da parte mais burguesa da vila que agora é cidade, a luz reflecte-se nas janelas e dá-se uma preguiça longa que nos faz descansar de uma tarde de discussões e insultos. O Zé Moreira diz sempre que aquilo parece um projector para o cenário. E a verdade é que ali, à boca de cena, inventaram-se histórias, fez-se música e poesia e teatro, discutiu-se o futuro da nação, escreveram-se compêndios de sebentas e até mesmo livros, pela pena do Prof. Baptista Machado, que viriam mais tarde a servir de apoio ao pensamento jurídico deste que vos escreve. Namorou-se muito e desfez-se muita coisa, também. Lugar de encontros e desencontro; de velhos, novos, ricos, pobres, mal afamados e aprumadinhos. O mesmo lugar onde há cerca de 40 anos uma mulher entrou sozinha pela primeira vez e isso foi motivo de surpresa, e onde agora três mulheres e apenas um homem assumem o volante com a destreza da longevidade. É lá que o café sabe melhor e os finos sabem a mel em tardes soalheiras como a de hoje, mesmo estando eu tão longe. É lá que a moedinha rola depois do almoço, na mesma mesa onde, mais tarde, a rapaziada veterana se junta para reviver o passado numa rede comprida: serviço, recepção, passe e ataque na saída. Ponto. AASM Académica. Quase que se ouviam os gritos a 700 metros, pela avenida onde passei os melhores anos da minha vida, de uma esquina à outra, do pinguinho à 1920. 20 anos de dedicação a um café que, como diz o Steiner, é a característica fundamental de uma Europa que se calhar já não existe; uma Europa de cafés e tertúlias prolongadas pelo calor da discussão. Sem merdas, que ali não há tempo para psicanálise.

 

 

 

à memória do Sr. Tiago e ao Sr. Gil

à D. Maria, à Manela, ao Gil e à Paula

aos amigos

22
Fev11

Conta-me como foi - um conto sociológico-matemático

jorge c.

Estava tudo bem na margem sul. Gaitán cruza para Cardozo que estava no meio de três cidadãos desorientados. Um desses cidadãos ensaia uma espécie de corte, que é uma forma de inverter a narrativa da bola num lance de um desporto com o qual ele não estava minimamente familiarizado. A bola sobra para Salvio - um latino-americano que tem um conhecimento académico do desporto - que não hesitou em empurrá-la lá para dentro. Golo! A margem sul parecia ser o sítio ideal para se estar. Tudo zen! Entretanto, o árbitro apercebendo-se que o adversário do Glorioso jogava com 8 desde o início resolveu tentar equilibrar e pôs-nos a jogar com 10. Foi justo e lá seguimos até o Gaitanzinho enfiar o esférico na rede de novo. Fiocou tudo bem. Preparavamo-nos para efectuar o devido pagamento quando salta uma sms para o telefone de um dos dois compatriotas Benfiquistas que me acompanhavam. "Anda para a embaixada da Líbia e traz cigarros". É num instante. Vamos lá e depois vamos beber um caneco. E assim foi. Chegados lá, não queríamos acreditar: uma multidão. Estes três reforços eram apenas uma migalha num grupo que passara então a ter 4 manifestantes. Entretanto chegaram mais 3 manifestantes munidas de 2 cartazes gigantes, A4, a dizer uma cena qualquer. Eu nem sabia que a Líbia estava com problemas. Nos placares, cá fora, parecia estar tudo bem desde os anos 70. A daydream em postais. Mas a polícia, que entretanto percebeu a ameaça que aqueles 7 cidadãos constituíam para a estabilidade do regime libidinoso, apareceu logo para dispersar a multidão. Infelizmente, dos 7 manifestantes, 7 deles foram identificados. É a pedagogia da autoridade. Entretanto, mãezinha, se for alguma carta para tua casa não te preocupes, fui eu que dei a morada. Não quero cá confusões com a justiça.

14
Fev11

Dos seus amores tão delicados

jorge c.

Numa lógica mais ou menos de caos aparente, mas muito organizado, lá seguem pela noite fora em filinha no alto do Bairro para atacar a noite. O Bairro já foi albergue da mais velha profissão do mundo - o eufemismo para casas de putas que eu tinha aqui mais à mão. Sem qualquer transição e acompanhamento passou a ser a zona lúdica da cidade à noite - outra espécie de divertimento nocturno que não o anterior. Guarda ainda a sua fotografia dos 80's onde alguns ficaram sem regresso previsto. Viveu muito da nostalgia, mas hoje a sua realidade tem uma nova linguagem. Com algumas mercearias espalhadas pelo labirinto de ruas, a moda do botellón parece ter pegado definitivamente. A circulação aumentou e a desfiguração das áreas destinadas a determinados grupos também. Os bares têm menos gente lá dentro (não só por isso, mas muito pelas políticas de fumo) e tentam fazer chegar a música cá fora. É a confusão total. À volta vão nascendo uma série de condomínios caros. A descaracterização do Bairro Alto é agora mais evidente. Mesmo assim, não parece haver uma política que resolva o problema de identidade do Bairro que se reflecte na forma como as pessoas se comportam socialmente. O Bairro tem habitantes que não terão uma vida fácil: barulho, lixo, bebedeiras problemáticas e o cheiro disso tudo de manhã. Muitas destas pessoas nunca tiveram grande escolha. Do divertimento antigo para o actual não houve uma transição equilibrada. O caminho dissimulado para habitar aquela colina com uma suposta elite, através de condomínios e hotéis, poderá não ser a melhor solução. Porque essa dissimulação entra em choque com o factor cultural na relação das pessoas com a cidade. Isto é um imbróglio. Mas não parece haver ninguém com grande preocupação em encará-lo com lucidez.

12
Fev11

Eurico

jorge c.

Na Baixa do Porto há mais de 35 anos, a Musicarte ocupa agora os números 80 e 82, emprega perto de uma dezena de pessoas e é uma das maiores e mais concorridas lojas do género no Porto. Cebolo diz que o negócio corre bem e desvenda um dos seus segredos: os livros. Não os manuais que o tornaram célebre, mas os outros.

 

Conheci o Eurico há cerca de 15 anos num dos périplos pela baixa em busca de cordas, palhetas e quejandos. A Musicarte era logo a primeira. Saíamos na paragem da Pr. República e entrávamos por lá adentro, com ele sentado e o cão por ali deitado ao lado, às vezes a meio da loja, com um ar demasiado sossegado. O ambiente era sempre sinistro, com um cheiro a mofo que nos deixa logo desconfiados da qualidade dos instrumento e a humidade sempre a estalar as paredes e as caixas de cartão. Deixava-nos mexer em tudo. "No que não podem mexer também não conseguem". Ninguém gostava dele. Era o velho. Depois, mais tarde, já nem parávamos lá e seguíamos directamente para a Rua Formosa, que era onde tudo se passava - a cena urbana, enfim. Acho que houve ali um período em que aquilo não corria lá muito bem. Eu ia lá às vezes sozinho falar com ele. Fazemos anos no mesmo dia. Nunca se queixava muito, mas lá tinha os seus momentos do "isto agora é tudo uma cambada, só querem os Nirvanas e não sei quê".

Lembro de, em miúdo, ter aqueles livros para estudar teclas. Era uma seca. A malta queria era rock, agora cá tocar teclinhas mais a merda das músicas de bolso. Mais tarde, descobri que ele era O Eurico Cebolo. O mesmo que escrevia aquelas novelas grotescas maravilhosas que foi mostrando sempre num tom sarcástico demasiado delicioso para não se gostar daquilo. Da última vez que lá passei, aí há uns 3 anos quando saía de casa de uma amiga que por ali morava, não estava. "Foi tratar de uns assuntos ao Marquês. O que era? Diga o que precisa que aqui todos tratamos de tudo". Não tratam nada. Não tratam de nada com aquela coisa que distingue os homens: a magnitude. A do Eurico é uma magnitude popular, de bairro, serena e discreta. Sentei-me ao lado dela muitas vezes.

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