jorge c.
Sobre o que é a esquerda e a direita tive muitas discussões com amigos ao longo dos anos. Porém, nenhuma distinção terá sido tão perfeita como aquela que RPS deu certa noite, à mesa de jantar. Disse o meu amigo que aquilo que distinguia as duas é que a esquerda não gosta da polícia e a direita não gosta dos polícias. A simplicidade desta distinção é tão maior quanto a sua assertividade. A partir de então, sempre que a discussão ressurgiu, citei sempre RPS. Confesso que o impacto não tem sido o esperado. Talvez não se dê assim tanto valor a metáforas tão simples (o que é uma pena), ou talvez muitas destas pessoas não tenham experimentado um acontecimento onde fossem confrontadas com esse factor de separação das imensas águas territoriais que rodeiam a sua natureza ideológica. São experiências que nos põem à prova.
Pois comigo, aconteceu, já lá vão cinco dias, passar por uma experiência próxima que me fez questionar o território em que me situo. Um desafio a que não soube responder imediatamente com a maior das seguranças, mas a que a metafísica, como sempre, ajudou a esclarecer. Estava eu, portanto, a encaminhar-me para o carro quando ao longe reparo que à sua volta se entrelaçava uma fita amarela. Praguejei, insultei e perdi noção de tudo o resto. Recompus-me para resolver o assunto. No vidro a informação no autocolante era clara e precisa: 90€ = 30€ de multa + 60€ para desbloquear o veículo. Enquanto aguardava que os cavalheiros da empresa municipal regressassem para me desbloquear o carro fui pensando nos motivos da minha - agora - bancarrota. Assumi o meu erro: não paguei o estacionamento pelo que me bloquearam o carro por falta de ticket. Pouco ou nada interessam as razões. Não paguei e este é um erro sancionável. Mas se a coima existe antes do bloqueio, por que razão não me haviam dado hipótese de ser apenas multado? A simultaneidade das sanções fez-me questionar a seriedade da instituição.
Chegados os funcionários da empresa municipal (uma autoridade em matéria de estacionamentos), tentei ser o mais cordato e gentil possível. O tempo que esperei fez-me pensar que aqueles homens apenas cumpriam regras e as suas funções seriam meramente administrativas, sem espaço para discricionariedades. Não deveria obrigá-los aos meus maus instintos, nem às minhas desculpas. Também não valeria a pena mostrar que era um cidadão cumpridor e que umas semanas antes teria até - diz-se - entregue um ticket a um desconhecido por ainda restar tempo de estacionamento. Esses desabafos da moralidade ficam para Deus ou para a edilidade. Paguei, despedi-me e desejei um bom dia de trabalho. Uma simpatia e adeus 90€.
Não tinha razão para me chatear com quem apenas fazia o seu trabalho. Estava então revoltado com a instituição "Empresa Municipal de Estacionamento", uma entidade fantasmagórica que habita no imaginário dos locais tanto pelo desprezo que lhes merece como pela raiva que lhes suscita. Repito que a minha revolta não se devia à sanção em si, mas sim à simultaneidade de sanções que me pareceu desadequada e, de certo modo, perversa. Teriam aqueles homens responsabilidade na adequação da sanção ao caso concreto, ou estariam apenas a seguir ordens específicas? A dúvida. Estaria eu, pela primeira vez, confrontado com a possibilidade de ter um problema com a instituição e não com o indivíduo? Ah! A metafísica!
A dúvida resolve-se quando invocamos questões de princípio. Todas as instituições que impõem acções a partir de regras, devidamente escrutinadas, têm de fazê-lo em proporção do erro cometido. Se houver um aproveitamento do princípio da proporcionalidade, a regra geral estará a ser pervertida. A responsabilidade nesta matéria é do agente que aplica a regra. Mesmo que envolva hierarquia e ordem superior, o agente tem uma escolha: cumprir ou perverter o sentido nuclear da regra. Se a filosofia da empresa, neste caso, é servir os cidadãos (e que no caso específico será bastante discutível), a perversão das suas regras implica um prejuízo para os cidadãos, uma perda de confiança institucional, em abstracto. Perde-se o valor institucional à conta da cobardia do agente local.
Depois desta reflexão respirei de alívio. RPS ainda tinha razão, ou o mesmo será dizer que eu ainda navegava pelas mesmas águas, sem ilusões ou confusões do território. E de repente todos aqueles adágios repetidos à exaustão fazem sentido: a árvore e a floresta, a andorinha e a primavera. A questão de princípio será sempre a mesma: a instituição nasce pura, o homem é que a corrompe.