A Vingança de Laertes
Uma viagem longa, a ressaca de um copo d'água e uma derrota do Benfica. Os dedos tresandavam, ainda, a tabaco. De tal forma, que até fumar me custava. Convenhamos que não era um bom dia para assistir a nada, nem a um homicídio, nem à ressurreição do Elvis, nem à vingança de Laertes.
Porém, foi assim, sem qualquer dignidade, que desci as escadas para a cave do Pinguim Café, comprometido com a Apuro e, em particular, com o meu amigo Rui Spranger, a quem havia prometido passar por lá assim que regressasse ao Porto. E é nesta lógica dos regressos que o nosso espírito fica mais receptivo aos detalhes da humanidade e da civilização.
William Shakespear, o mais brilhante dos dramaturgos, sabia os espíritos fechados. A magia da sua arte era despertar os corações, debruçando-os sobre o abismo, com o céu em qualquer parte, sem saber se de dia ou de noite, porque a escuridão era total. Na vida ou na morte. A verdade suja e cruel acabaria por aparecer.
Precisamente quando ela aparece, em Hamlet, Paulinho Oliveira resolve convidá-la para um copo. É como se tivessem conversado e concluído que, às vezes, nem tudo tem de ser como aparenta. Nem a morte. É, então, que surge Laertes para despir Hamlet e expô-lo. Os dois mais mortos do que vivos, num jogo de convicções vincadas, como um dardo num alvo incerto. Mas, a serenidade de Hamlet inverte a certeza criada desde o início.
A Vingança de Laertes é um texto de uma erudição rara no teatro português. O seu autor (encenador e actor) consegue compreender o impacto que o carácter tem na dinâmica de uma sociedade e como um simples gesto pode corromper um universo. Quem vive, então, em função do quê? Que causa serves, Hamlet? São estas perguntas, do mais íntimo de uma personagem à reflexão social, que Paulinho Oliveira provoca, até nos esmagar o peito e fazer-nos questionar sobre o que fizémos (ou o Once in a Lifetime, dos Talking Heads). "Se queres prosperidade por um ano, cultiva grão. Se queres prosperidade por 10 anos, cultiva árvores. Mas, se queres prosperidade por um século, cultiva gente".
Todas as palavras no sítio certo, num texto longo que acaba por não incomodar, dada a sua dinâmica e a excelente encenação. Os dois actores são envolvidos por duas tensões diferentes que convergem no factor trágico. Laertes é uma tragédia universal e intemporal. E é dessa intemporalidade, das coisas que não morrem, que vive esta peça - da envolvência entre tempos diferentes.
Estamos perante um caso claro de uma peça que é muito bem recebida num bar da cidade do Porto (talvez o único que ainda se preocupe, mesmo que com poucos recursos), mas que merecia um palco maior, uma outra sala. O seu final lento e, talvez, o único momento desnecessário de todo o espectáculo (as fotografias são demasiado ingénuas e fica-se com a sensação de que nos estão a impor sentimentos, tornando o objecto óbvio) é agravado pelo desconforto da sala.
No entanto, é um espectáculo tão inspirador, que esquecemos este detalhe com facilidade. Voltamos a beber. Voltamos a fumar. Perdôo o Benfica e desejo felicidades ao meu amigo que se acaba de casar. Pois, agora, compete-lhe a ele cultivar gente.